Winnicott, 128 anos de criatividades
Donald Woods Winnicott nasceu em 07 de abril de 1896, filho de John Frederik Winnicott (trabalhava na empresa familiar de cutelaria, produtos de zinco e ferro, banheiras galvanizadas, objetos banhados a prata e baús de viagem em estilo japonês, artigos de moda, espartilhos, doces Winnicott Sweets, fornecedores de roupas para a Marinha Real, também um religioso ativo, político (tinha 41 anos quando Winnicott nasceu) e de Elizabeth Martha Woods Winnicott (filha de um químico e farmacêutico), na cidade de Plymouth, região de Devon, bem ao sudoeste da Inglaterra. Donald é um nome de origem celta e significa mighty (poderoso). O sobrenome deriva de “Winn”, palavra saxônica que possivelmente significa “amigo” e de “Cott”, “casa”. Era o caçula e tinha duas irmãs Violet (1891) e Katleen (1889). Além da família nuclear, vivia na sua casa também uma tia (Délia), uma governanta para as irmãs e uma babá (Allie), que cuidava de Donald. Seu objeto transicional era uma boneca, chamada Lily, que pertencera a Katleen. Escreveu poesias, participou de artes dramáticas (como amador) e tocava piano.
Depois de ter quebrado sua clavícula e ter tido que se submeter a tratamento por médicos, resolveu ser médico, para não depender de médicos (!). Em 1917, matriculou-se no St. Bartholmew’s Hospital Medical College da Universidade de Londres. Graduou-se médico em 1920, orientando-se para a pediatria. Em 1923 foi nomeado médico-assistente no Padington Green Children’s Hospital, onde trabalhou por 40 anos e atendeu mais de 60 mil casos. Neste mesmo ano casou-se com Alice Buxton Taylor, quatro anos mais velha que ele, uma artista que pintava, esculpia e tocava música. O casamento durou 25 anos e sua esposa sofria de distúrbios psiquiátricos, com delírios e alucinações.
O primeiro tratamento psicanalítico de Winnicott foi realizado com James Strachey, entre 1924 e 1933, pois tinha dificuldades eréteis e medo da genitália feminina. Em 1925 sua mãe faleceu. Qualificou-se psicanalista em 1934 (de crianças em 1935); fez supervisão com Melanie Klein entre 1935 e 1941. Tornou-se analista didata em 1940, aos 44 anos de idade. Sua segunda análise foi com Joan Hodgson Verrall Rivière, por cinco anos, depois de ter pensado em se analisar com Melanie Klein (esta não o atendeu, pois queria que ele tratasse o filho dela). O pai Frederik faleceu em 1948. Em 1951 casou-se, pela segunda vez, com Clare Britton, com quem viveu até o final de sua vida. Winnicott faleceu em 29 de janeiro de 1971, dois anos depois de sua primeira esposa Alice. Foi o fundador da Psicanálise de Crianças na Inglaterra. Transmitiu um ideal de não-ruptura que repercutiu em suas posições institucionais. Independente sem ser solitário, não gostava de seitas, de discípulos, de imitadores.
Há conceitos típicos, na história da psicanálise, que trazem uma clínica de marca winnicottiana. Vamos lembrar alguns. O desenvolvimento da realidade interna inclui a não-integração primária, integração, personalização e realização. A ideia de dissociação que surge a partir de uma não integração ou uma integração incompleta ou parcial, como ocorre quando não se lembra dos sonhos, no estilo de vida urbana e na dissociação guerra/paz. Winnicott nos apresenta as necessidades do ego e necessidades do id, onde a satisfação do id é vivida como fortificante do ego e as excitações do id podem ser traumáticas. Ao trazer a noção de paradoxo, Winnicott propõe que o bom ou o mau no ambiente do bebê não é, de fato, uma projeção mas, apesar disso, é necessário, para que o bebê-indivíduo se desenvolva sadio, que tudo lhe pareça uma projeção, como ação de onipotência e princípio do prazer. Invasão e reação caracterizam um meio ambiente constantemente descoberto e redescoberto pela motilidade.
Cada experiência no interior da estrutura do narcisismo primário enfatiza o fato do novo indivíduo estar se desenvolvendo a partir do centro e o contato com o meio ambiente é uma experiência do indivíduo (inicialmente no seu estado indiferenciado ego-id). O meio ambiente invade o feto (ou o bebê) e, em vez de uma série de experiências individuais, o que há é uma série de reações a invasões. Neste caso desenvolve-se uma retirada para o descanso, a única coisa que permite a existência individual. É quando a motilidade passa a ser experimentada como uma reação à invasão. Num caso extremo, isto é exagerado a tal ponto, que não há nem mesmo um lugar de descanso para a experiência individual e o resultado é que o estado de narcisismo primário não produz o indivíduo. O indivíduo então se desenvolve como uma extensão da casca e não do cerne, e como uma extensão do meio invasor. O que resta de um cerne fica ocultado, sendo difícil achá-lo mesmo em uma análise muito profunda. O indivíduo, neste caso, existe por não ser encontrado.
O verdadeiro self fica oculto e temos que lidar clinicamente com o complexo falso self, cuja função é manter o verdadeiro self oculto. O falso self pode ser convenientemente sintônico com a sociedade, mas a falta do self verdadeiro produz uma instabilidade que, quanto mais a sociedade é levada a acreditar que o falso self é o verdadeiro self, mais evidente se torna. O paciente se queixa de uma sensação de futilidade.
O holding, termo raramente traduzido, expressa o “viver com” (mãe, pai e lactente chegam a um estado unitário), protegendo de agressão fisiológica. O manejo (handling) implica mãe suficientemente boa (capaz de responder ao gesto espontâneo e à alucinação do lactente). Na ideia de crueldade primitiva, no estádio de pré-preocupação, acontece relação cruel com a mãe porque só dela se pode esperar tolerância. A retaliação primitiva é anterior a uma verdadeira relação com a realidade externa, onde o outro ou o meio ambiente é parte do self.
Na ideia de self central o potencial herdado está experimentando a continuidade da existência e adquirindo, à sua maneira e em seu passo, uma realidade psíquica pessoal e o esquema corporal. O isolamento deste self central é característica da saúde.
Se pensarmos Freud versus Winnicott, Freud via o ego colocado frente a frente com dois tiranos – os desejos pulsionais e a realidade externa - e fazendo o possível para servir a ambos, a fim de garantir o próprio crescimento e sobrevivência; Winnicott tinha um ponto de vista inteiramente diferente: aceitava a realidade como aliada dos processos maturativos em andamento no bebê e examinava com extraordinária perspicácia e penetração o caráter dos recursos ambientais (maternos) para a personalização do potencial psíquico e pulsional do bebê no sentido da plenitude do self. Winnicott deduzia que não há id antes do ego. Somente a partir desta premissa se pode justificar um estudo do ego. Winnicott conclui que é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado.
No relacionamento bebê/objeto transicional, o bebê assume direitos sobre o objeto. O objeto é afetuosamente acariciado, bem como excitadamente amado e mutilado. Ele nunca deve mudar, a menos que seja mudado pelo bebê. Deve sobreviver ao amor pulsional, ao ódio também e à agressividade pura, se esta for uma característica. Contudo, deve parecer ao bebê que lhe dá calor, ou que se move, ou que possui textura, ou que faz algo que pareça mostrar que tem vitalidade ou realidade próprias. Ele é oriundo do exterior, segundo nosso ponto de vista, mas não o é, segundo o ponto de vista do bebê. Tampouco provém de dentro; não é uma alucinação. Seu destino é permitir que seja gradativamente "descatexizado", de maneira que, com o curso dos anos, se torne não tanto esquecido, mas relegado ao limbo. Com isso quero dizer que, na saúde, o objeto transicional não "vai para dentro"; tampouco o sentimento a seu respeito necessariamente sofre repressão. Não é esquecido e não é pranteado. Perde o significado, e isso se deve ao fato de que os fenômenos transicionais se tornaram difusos, se espalharam por todo o território intermediário entre a "realidade psíquica interna" e o "mundo externo, tal como percebido por duas pessoas em comum", isto é, por todo o campo cultural.
A partir disto, podemos sistematizar a obra de Winnicott numa Teoria do Desenvolvimento (relação mãe/filho, influência da família e do ambiente facilitador); Teorias dos Impulsos (sexualidade - elemento masculino e elemento feminino – agressividade, questionamento da existência de um instinto de morte, agressividade e cólera - abandono de catexis; Teoria do Objeto (objeto subjetivo ‘inicial’ ; objeto objetivo ‘posterior’; objeto transicional; Teoria do Espaço (espaço potencial: zona intermédia entre realidade externa e interna, entre o jogo e o brincar; Teoria do Self (verdadeiro self e falso self); Teoria da Comunicação (formas de comunicação, incomunicabilidade humana/esquizoidia, ‘núcleo do verdadeiro self é um santuário inviolável que nunca se comunica com o exterior’); Teoria da Regressão; Teoria da Setting; Teoria da Contratransferência; Teoria Psicossomática; Teoria da Tendência Antissocial.
Espero ter trazido algumas velinhas para o bolo dos 128 anos de Winnicott. Parabéns!
Bruno Salesio S. Francisco
Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA
(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)
1 Comentário
JOSE FRANCISCO ROTTA PEREIRA
170 diasResponder