O suicídio na história dos pioneiros da psicanálise
Setembro Amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio; incialmente, promovida pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP); associada ao Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, 10 de setembro; organizado pela Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (IASP) e endossada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A psicanálise como disciplina - na qual estão englobados procedimento de investigação dos processos mentais, método de tratamento e concepções psicológicas derivadas do procedimento e do tratamento - tem muito a contribuir sobre tão pungente tema. A questão do suicídio – pensado, temido, tentado, consumado, gerador de estigma (...) - atinge a todos, seja na saúde pública, no trabalho clínico, nas famílias enlutadas, nas escolas e na sociedade de maneira geral.
Não é diferente no ambiente psicanalítico. Utilizarei alguns aspectos biográficos dos pioneiros da psicanálise como convite à reflexão. Psicanalistas falam, escrevem, levantam hipótese (...) sobre quase todos os aspectos da vida de Freud; não é diferente sobre sua morte; por exemplo, suas cinzas foram guardadas em uma peça que lhe foi presenteado por Marie Bonaparte.
Contudo, quando se fala sobre a causa da morte, se faz de maneira superficial/eufemística; como, por exemplo: ele morreu pelo câncer! O que não é inteiramente verdade; ele morreu com o câncer. Nomear de eutanásia parece adequado; entretanto, não foi uma eutanásia de alguém que estava com morte cerebral ou inconsciente. Ele tomou a decisão, escolheu quando realizá-la. É uma linha tênue com o que conceitualmente poderíamos nomear de suicídio. Algo compreensível pelo contexto, sofrimento e limitações terapêuticas impostas pela sua doença clínica. Os pruridos com as abordagens parecem com o cuidado, constrangimento, negação, silêncio (...) das famílias de suicidas. Não se pode descartar que tamanha proteção contenha um velado preconceito.
Provavelmente, Freud foi ao encontro da morte pelo medo de que ela não o encontrasse vivo; atuando antecipadamente a assertiva de Winnicott: “(...) que eu esteja vivo no momento da minha morte”. Geralmente, a antecipação é triste e dura para o entorno. Tecnicamente, o que Freud fez foi uma morte assistida (ou suicídio assistido ou morte medicamente assistida). Não deixa de ser uma tentativa de estar vivo no encontro com a morte; mas, através de uma decisão pessoal: suicídio? O que o diferencia (ou qualifica) é a presença de um interlocutor. Percebo que as pessoas (psicanalistas?) aceitam melhor essa decisão quando associada a um colapso clínico irreversível. Há uma tendência de se moralizar (daí a vergonha) quando o suicídio é visto como decorrente de um colapso emocional ou o desfecho de um longo adoecer mental.
Para corroborar a hipótese, lembro-me que quando estudante, quando se citava Arminda Aberastury, uma importante psicanalista argentina, alguém logo citava que ela havia se suicidado: como uma loucura, um ato psicótico! Por mais que ela igualmente estivesse com uma doença terminal e desfigurada. Pode existir algo de misoginia na interpretação de enlouquecimento nas atitudes femininas; em oposição a sacralização da atitude masculina freudiana; apenas uma hipótese.
Cerca de quinze anos antes da morte de Freud, seu médico confidenciou a conhecidos que - devido às limitações da doença clínica, inequivocamente provocada por sua dependência à nicotina - temia que ele, Freud, pudesse se suicidar; inclusive, que já havia solicitando que caso seu quadro saísse do controle, o ajudasse a dar cabo ao seu sofrimento. O que só aconteceu mais de uma década depois; então, com a ajuda de outro médico.
Frequentemente, quando se aborda algumas questões biográfica dos primeiros psicanalistas, se utiliza a justificativa de preservação da biografia, o que protegeria a psicanálises de mais ataques do que ela já sofria. O argumento ainda utilizado no seio da psicanálise pode refletir a universal dificuldade de lidar com o tema ou com a verdade, algo que ninguém está absolutamente imune.
Tal argumento, talvez aceitável no passado, na atualidade soa ingênuo e pretensioso; e em completo desacordo com os preceitos psicanalíticos; são pilares caros ao seu espírito: nomear/trabalhar/elaborar/aceitar o que se acredita ser a verdade (ou uma aproximação desta). Imaginar que se consiga escamotear dados das biografias é mágico e, sempre, a deixa pior do que a dura aproximação da verdade. Nada diferente do trabalho com os familiares enlutados de pacientes suicidas; importante para a prevenção de novos suicídios no seio destas famílias.
Melanie Klein, uma das pioneiras da psicanálise, sofreu com várias perdas nas duas primeiras décadas de sua vida: uma irmã quando era muito pequena, o pai ainda adolescente e o irmão por depressão e abuso de substâncias. A relação com a mãe era muito conflituada. Uma experiência terapêutica aproximou-a da psicanálise.
Como Freud, Klein também utilizou suas dores, traumas e relações próximas para desenvolver teorias. Seu filho do meio morreu com suspeitas de que tenha se suicidado. Melitta, sua filha mais velha, entre outras questões, passou a atacá-la, insinuando que ela, e seu comportamento, eram os responsáveis pelo trágico desfecho. Romperam e nunca mais reataram. Seguiu produtiva e os rompimentos seguintes - o que ocorreu com muitos dos(as) discípulos(as) – foram, igualmente, utilizados como matéria-prima para as suas teorizações. Mesmo havendo dúvidas sobre o suicídio, a possibilidade, entre tantas outras questões, seguiu como trauma não elaborado na família.
Entre eles, Victor Tausk, jornalista, ensaísta; brilhante, mas com um histórico importante de oscilações de humor; após entrar em contato com escritos de Freud, resolveu mudar-se para Viena e fazer medicina e dedicar-se à psicanálise; e assim foi. Considerado um dos pioneiros, brilhante e errático, com comportamento intempestivo, relações amorosas inconstantes e adição à substâncias, em meio às dificuldades que se acentuaram, se suicidou três meses após interromper sua análise com uma discípula indicada por Freud: não sem antes deixar algumas cartas, entre elas, uma para Freud, que, aparentando uma absoluta insensibilidade e superficialidade, talvez um indicativo do quão traumatizado tenha ficado, fez comentários pouco empático sobre o desfecho.
A iluminação dessas questões associadas aos primeiros psicanalistas – que estão em sintonia com os principais fatores de risco de suicídio - visa humanizá-los e desmitificar a universal questão. A diminuição dos preconceitos é fundamental para se ter uma compreensão mais aprofundada deste ato, que segundo Camus é o único problema filosófico verdadeiramente sério!
Des/moralizar todos os aspectos que envolvem o suicídio (pensamento/tentativas/consumação) é basilar para se pensar métodos efetivos na escuta, compreensão e tratamento de pensamentos que ninguém, em determinadas condições, está absolutamente imune de ter. Geralmente, as pessoas só falam sobres seus pensamentos suicidas se sentirem que não serão julgadas. Por outro lado, só não julga quem aceitar que é uma condição a qual todos estão expostos. Os suicídios são mais prevalentes do que se imagina; entretanto, são muito mais frequentes os portadores de ideias suicidas e, eventualmente, até os que tentam, que após adequadas intervenções, passam a viver de maneira satisfatória; sem o peso da desesperança e a intrusão da perturbadora ideação.
P.S. A psicanálise, através de diversos autores, oferece inúmeras contribuições para aprofundar a compreensão e as intervenções. Essas questões não estão no escopo do presente texto.
Hemerson Ari Mendes
Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA
1 Comentário
Beatriz Sander
20 diasResponder