Capitão Pátria: um caso de narcisismo extremo na série The Boys

Os vilões são personagens chave de grandes histórias. Em alguns casos eles tornam-se tão importantes quanto os heróis, como no caso de Coringa, o arqui-inimigo de Batman, que receberá o seu segundo e esperado filme neste ano.

Os vilões têm um destaque na atualidade. Vivemos uma certa admiração pela vilania, basta lembrarmos de séries em que os protagonistas são seriais killers (como em You), criminoso pesados (como Breaking Bad) ou golpistas (como Inventando Anna).

Tenho argumento para indicar o Capitão Pátria como o maior vilão deste século: ele é a base desta ótima história pela minha avaliação pessoal; a série The Boys tem grande reconhecimento, sendo uma das mais rentáveis da Amazon Prime; o ator que o interpreta, Antony Star, vem sendo amplamente reconhecido; como expectadores, gostamos de psicopatologia e de funcionamentos mentais diferentes do padrão, onde o personagem está facilmente incluído; e para fechar, ele consegue provocar uma mistura especial de antipatia e curiosidade.

Para justificar o apreço que os alguns vilões causam, podemos recorrer a Freud (1). Ele se referiu ao interesse provocado pelo criminoso da representação literária, dizendo que é “como se o invejássemos pela conservação de um estado psíquico bem-aventurado, uma posição inatacável, que desde então abandonamos”. Dentro deste ponto de vista, o vilão então pode ser entendido como o representante da parte do Eu que está voltada para a satisfação da necessidade, que foi modificada diante do princípio da realidade.

Alguns recados aos leitores deste blog psicanalítico: para quem assistiu e é fã de The Boys, espero que aprecie os pontos de vista levantados e que as ideias psicanalíticas sobre a série fervilhem. Provocando: será que há mais situações, personagens e pontos de vista a serem discutidos? Para os expectadores dos universos de fantasia ou curiosos, sugiro que considerem incluí-la na lista de séries a serem vistas. Para quem tem pouca conexão com estes universos ficcionais, apresento este personagem e proponho que considerem conhecê-lo melhor.

A série estreou em 2019 e está em sua quarta temporada, lançada em junho de 2024. Este universo ficcional foi criado em 2006 em história em quadrinhos pelo reconhecido autor Garth Ennis. Suas histórias apresentam sarcasmo, deboche e violência do tipo splatter (sangue e vísceras para todos o lado), presente na série.

Pode se pensar que se trata de mais uma história de super-heróis, como tantas outras. Mas a série é um deboche das histórias de super-heróis, como Vingadores ou Liga da Justiça. Em The Boys, estes seres com poderes são chamados de “supers”, mas são pessoas emocionalmente frágeis e os verdadeiros vilões, afinal matam, abusam e fazem o que bem entendem.

Em The Boys existe o grupo de supers, Os Sete, que pertencem à empresa Vough. Esta empresa, por sua vez, combina uma indústria de biotecnologia, serviços de supers e reality shows com suas celebridades de superpoderes e uniformes coloridos. Diferente dos universos de super-heróis tradicionais, em The Boys não existem ameaças extraterrestres, ou algum vilão desejando dominar uma cidade pelo crime ou controlar o mundo. As preocupações deles estão em relação a likes e à aprovação do público.

Os Sete são liderados pelo Capitão Pátria, que remete ao Super-Homem, enquanto outros supers remetem à Mulher Maravilha, Batman, Capitão América e outros heróis conhecidos. A maior ameaça que eles enfrentam é um grupo que tenta exterminar os supers, especialmente o Capitão Pátria, chamados de “Os Caras”, que tem mais escrúpulos do que Os Sete, mas menos do que a média da população.

Um exemplo de deboche é através do super Profundo - referência a Aquaman, que era o símbolo de algo inútil, pois debochava-se do seu papel em missões fora da água (o deboche não tem mais sentido levando em conta o Aquaman “atual”, mostrado nos filmes da DC pelo do ator Jason Mamoa, não é nada inútil). Porém, Profundo é um dos mais mimados e envolvido em abusos sexuais. Ele também traz questões que podem abranger pansexualidade e perversão, pois ele tem relações sexuais consensuais com a polvo Ambrosius (como Aquaman, ele fala com animais marinhos).

A série também apresenta questões contemporâneas de polarização entre conservadores e progressistas, sendo assumidamente woke. São exploradas as fake news, o papel das mídias e a violência entre grupos opostos. Capitão Pátria, originalmente chamado de “Homelander”, usa como capa a bandeira americana, representado o nacionalismo americano. Na atual temporada, a série entrou mais na política, incluindo personagens inspirados em personalidades políticas da vida real.

O Capitão Pátria é uma paródia do Super-Homem, o primeiro super-herói e talvez o maior de todos, representando poder, esperança e o bem. Em um trabalho sobre psicologia dos super-heróis, Robin S. Rosenberger (2) apresenta o Super-Homem como alguém com uma moral incorruptível, que não desvia das suas metas altruístas, completamente diferente do personagem apresentado neste artigo.

O Capitão Pátria também pode ser visto como uma cópia maligna do Super-Homem, um duplo descrito em “O Inquietante” (3). Pode ser que exista uma figura filogênica da cultura atual envolvendo o Super-Homem e o Capitão Pátria nos provoca por representar o duplo do ícone dos super-heróis, em uma versão desprovida do seu altruísmo imparável.

Por trás de sua postura altiva, o Capitão Pátria é sensível à frustração. Ele se vê como a pessoa mais importante do mundo e que deve ser servido. O self grandioso e a autoestima não é diferente dos outros casos de narcisismo, porém, algumas peculiaridades chamam a atenção. A primeira é a partir da relação romântica e maternal com Madelyne Stillwell, uma gestora da empresa Vough. Ela o trata com um cuidado maternal superficial, seduzindo-o através da sensualidade e de frases como “os deuses são perfeito e estão acima de qualquer coisa”. Ela também estava esperando um bebê de uma barriga de aluguel e fez um procedimento para lactar. Em um momento que o leite se acumulou, Capitão Pátria ficou nitidamente excitado. Ela também o colocou em seu colo, bem próximo aos seus seios, oferecendo seus dedos para serem “mamados”. Tiveram uma relação sexual, que terminou em um episódio de ejaculação precoce.

O Capitão Pátria mantém uma fixação em um período infantil da amamentação e no início da adolescência. Ele tem uma relação fusional da mãe com a companheira sexual, concretizando a conquista do Complexo de Édipo, mas sem um rival castrador. Isso pode explicar a forte onipotência do Capitão Pátria, que não tem um rival para temer.

As outras duas situações só são possíveis devido a figuras de linguagem próprias da fantasia. Estas situações descrevem uma forma concreta de amor para si próprio. Em um momento de angústia, o Capitão Pátria recorreu à masturbação, realizando este ato enquanto pairava no alto da cidade, falando que ele era a pessoa mais poderosa do mundo. Em outra cena, ele encontrou um super com a habilidade de se transformar em qualquer pessoa. Este super faz a proposta de se transformar em uma cópia do Capitão Pátria para que eles tivessem uma relação sexual. Por um instante, ele apreciou a ideia através de um sorriso, até que restabeleceu seu sistema regulatório e ofendido, matou o super que fez a proposta.

Uma teoria psicanalítica que complementa bem o narcisismo do Capitão Pátria é a de Kernberg (4), que descreve os pacientes com funcionamento borderline. O primeiro deles é a tendência sexual perversa polimorfa, quando existem desvios sexuais manifestos. Além das peculiaridades da sexualidade já descritas, existem outras situações, como atos sexuais no meio de espirros de sangue de criminosos executados. Ele também é caracterizado por uma neurose de impulso e adições, pois seus impulsos precisam ser gratificados e são na maior parte do tempo egossintônicos (no caso do Capitão Pátria, sempre são). Apresenta um transtorno de caráter de “nível mais baixo”, representando pelo caráter caótico dominado pelo instinto e pela estrutura antissocial.

A origem do Capitão Pátria apresenta um ser que foi desenvolvido em laboratório, um produto agência Vough. Nos seus primeiros anos ele passou por diferentes experimentos e foi privado de cuidado familiar. Uma cena mostra algo que parece ter sido o melhor afeto que recebeu: uma brincadeira de aparece-esconde através de um vidro blindado.

O Capitão Pátria preserva um sentimento de onipotência e de autorreferência próprio de algumas estruturas narcisistas. Pode ter se formado pela combinação da percepção do quanto ele é realmente especial por ser um super e pelas condições em que se desenvolveu, na solidão de um laboratório. Ele preservou o traço onipotente da experiência infantil como forma de sobreviver às necessidades humanas não atendidas.

Muito mais poderia ser falado sobre The Boys e sobre o Capitão Pátria, como a sua crise da meia idade. Ainda teremos a quinta e final temporada prevista 2026.  Até lá, ele vai poder apresentar mais do seu narcisismo extremo. Como será que ele vai ser derrotado?

 

  1. Introdução ao Narcisismo (1914), Sigmund Freud
  2. The Psychology of Superheroes: An Unauthorized Exploration (2008), Robin S.Rosenberg e Jennifer Canzoneri
  3. O Inquietante (1919), Sigmund Freud
  4. Transtornos Graves de Personalidade (1984), Otto F. Kernberg

 

Diogo de Bitencourt Machado

Analista em formação do Instituto de Psicanálise Sergio Abuchaim da Sociedade Psicanalítica de Pelotas (SPPEL/FEBRAPSI/IPA)

 

2 Comentários
Eduardo Brod Méndez
52 dias
Parabéns pelo texto, Diogo! A construção, desenvolvimento e evolução de uma mente analítica encontra na escrita (a exemplo do pai da psicanalise) um exercício valioso de reflexão e um recurso muito rico de dialogo!

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Thiago Donassolo
41 dias
Bacana Diogo, não conheço a série mas fiquei imaginando os personagens na oscilação (talvez caricata) do narcisismo entre “modos” de pele grossa e fina.

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