O caráter como o casaco às pressas abotoado!

Que verso!!! Ou seria uma definição de personalidade, forjada no calor da improvisação?

Está no poema  “A vida na Hora” (que está no fim do post, quem quiser pode ler antes), autoria de Wislawa Szymborska, a polaca Nobel de Literatura - no paranaês não existe polonês(a).

“Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”, escreveu Freud. No caso, ela veio depois, mas a maneira com a qual as questões do cotidiano são abordadas amplia e aprofunda insights. No poema, as implicações de subitamente, sem ensaio, medida, reflexão, ausência de papéis definidos e impossibilidade de permuta; sem tema definido e, ao mesmo tempo, já em cena, vivermos o improviso, gostando ou não, nos fazem entrar em contato novamente com o pavor. 

Tropeços no desconhecimento, os instintos (poderia se citar, aptos para o passado) são amadores para o porvir. Palavras e reflexos não se apagam, essas e tantas outras coisas e circunstâncias, nos levam, às pressas (ou sobre a pressão das angústias) a pegar/abotoar o casaco/caráter/personalidade que nos acompanhará até o final – sujeito, ou não, a reformas. Sem esquecer, como está no final do poema, “o que quer que eu faça, vai se transformar para sempre naquilo que fiz”.

Segundo o Dicionário Houaiss, o termo caráter vem do grego “kharactér” (do lat. Character), sinal gravado, “marca gravada, sulcada”. A psicanálise é a abordagem por excelência para trabalhar com o conjunto de traços psicológicos e/ou morais que caracterizam um indivíduo, ou seja, o caráter. Freud foi o primeiro a estudar psicanaliticamente a formação e a conceituação de caráter; ao longo do tempo, com o desenvolvimento das suas teorias, foi adaptando e acrescentando. Atualmente, entende-se o caráter como um precipitado de múltiplas influências; a partir do modelo estrutural, atribuindo uma participação prioritária do ego, com suas representações, identificações, mecanismos de defesa, impactado pelas ameaças do superego, do ego ideal, do ideal do ego, das relações objetais (…) e, implicitamente, as influências biológicas.

O genial do poema de Szymborska é que ele também, belamente, representa o que acontece numa sala de análise; na qual, ambos, analista e analisando, precisam trabalhar/sentir/pensar uma reencenação sem sessão prévia ou ensaio - sim, um paradoxo – uma reencenação, sem que a priori se lembre da primeira experiência. (Re)vivemos uma constante estreia com roteiros desconhecidos.

Aos que gostam de psicanálise, associem livremente; aos desengajados, simplesmente, apreciem:

A vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira a província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não
conheço.
Isso é justo — pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

Ilustração – Charge e fotografia de Wislawa Szymborska em icônicas atuações 

Hemerson Ari Mendes

Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

3 Comentários
Denise Zimpek Pereira
47 dias
Muito bom ! Esse cruzamento de poesia e Psicanálise é uma especialidade do autor! Lembrei também de Janine Puget, cujos escritos dão ênfase ao momento vivido no aqui e agora, aquele momento inédito!!

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Beatriz Hax Sander
47 dias
Lindo texto Hemerson! É no agora que a vida acontece, sem roteiros, ou ensaios ; é o momento atual, o passado já não existe e o futuro ainda não aconteceu. Improvisamos a todo momento! Adorei a metáfora da autora com : abotoamos o casaco às pressas ! É a arte imitando a vida ou seria o contrário ? Parabéns

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Beatriz Hax Sander
47 dias
Lindo texto Hemerson! É no agora que a vida acontece, sem roteiros, ou ensaios ; é o momento atual, o passado já não existe e o futuro ainda não aconteceu. Improvisamos a todo momento! Adorei a metáfora da autora com : abotoamos o casaco às pressas ! É a arte imitando a vida ou seria o contrário ? Parabéns

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