Bebê Rena

“Subo nesse palco

Minha alma cheira talco

Como bumbum de bebê.”

Gilberto Gil

- Bom dia. Tem uma mulher me perseguindo.

- Há quanto tempo?

- Há uns seis meses.

- E por quê só agora resolveu prestar queixa?

 

Dony/Richard Gadd abandona o boletim de ocorrência e tenta responder às perguntas a si próprio. Refaz o caminho, não dos seis meses, mas todo o caminho que o levou àquele momento, sabe que faz mais tempo, que muitas foram as ocorrências...

Um jovem querendo ganhar o mundo, e ganhar a vida despertando/recebendo risadas, como comediante, longe da casa dos pais. Digamos uma versão do sonho adolescente atual de youtubers, tik tokers. Sai da Escócia, seu ninho, e da austeridade de uma família em que a mãe aprovava todas as gracinhas que fizesse, e o pai, “criado na Igreja, ele sabia o que isso significava”, vociferava contra toda obscenidade, rumo a Praga.

Abre seu show de estreia, como todos, com a piada: “minha mãe morreu”.  Ninguém ri/entende... É para rir ou chorar? Dony comunica que “matou” a mãe na saída da adolescência, ou que a mãe era uma “mãe morta”? O que “entendia” sobre o pai, nunca falado, era uma cripta familiar, trauma/abuso repetido transgeracionalmente? Os pais precisam sobreviver aos impulsos dos filhos, incestuosos e parricidas, bem como conter seus próprios; a comédia pode virar tragédia. No lançamento da série, sucesso absoluto, Richard pediu aos pais que não a assistissem, não queria que se sentissem mal, e talvez não só pelas cenas explícitas, mas as implícitas, sobre eles/nós.

Sofre os primeiros fracassos, suas piadas não contagiam, e ele é capturado por promessas de sucesso, entre celebridades e um “mágico”, com truques rápidos para o paraíso almejado. Seguindo seu (i)mago, vai para Londres, onde inicia um novo episódio da vida; ingressa num curso de teatro e num relacionamento estável com uma jovem; muda-se do adolescer para o adultecer. Descobre que a vida não são memes e que nem tudo é tão engraçadinho como a mãe fazia crer; trabalha em um pub para se manter, mora na casa da mãe da namorada para ficar com ela, e a potência (sexual e a onipotência da mente adolescente) o abandona. O caminho mágico, regressivo, oferecido por um “provedor do que precisa” o atrai novamente, e ele, ainda cheirando a talco, se vê num palco, cuidadosamente preparado para uma cena mais trágica, de um abuso. Neste episódio, as imagens despertam nossos piores pesadelos; ao contrário do “boa noite cinderela” que o sedava e introduzia no estupro, são (obs)cenas de tirar o sono dos expectadores no sofá, pensando em seus filhos ou na perversão que habita a todos. Dony é explícito: “vocês podem pensar que eu não voltaria, mas voltei”. Compulsão à repetição mortífera; sem objeto, a pulsão de morte se manifesta.

O estupro penetra seu corpo e sua mente, traumático, ferindo toda sua intimidade. Chora intensamente, longe da contenção afetiva do jovem escocês, com piadas pouco engraçadas e face pouco expressiva. Não sabe o que sente, pensa, quem é; perguntas que não foram respondidas na delegacia, nem nunca. Rompe-se sua integridade física e psíquica, fragilmente consolidada. Estamos “conectados” aos nossos jovens, ou os abandonando aos cuidados dos influenciadores?

Rompe o relacionamento com a namorada, e praticamente todos; lança-se a encontros (sexuais mas não genitais) sem nenhum vínculo afetivo, exceto com a sogra, que, enlutada pela perda do filho, o coloca na pele/jaqueta dele, e no ninho vazio dela. Dony precisa deste objeto, tanto quanto ela dele.

É nesse lugar estrangeiro, unheimlich, que Martha o encontra e chora na sua frente. Essa linguagem universal, se comunica com o choro de Dony. Ele lhe oferece o olhar, de que ambos careciam, e uma resposta também inteligível em qualquer idioma: handling servido em uma xícara quente. Dony inaugura a comunicação com Martha e consigo próprio, a vê e se vê nela. Martha responde com o que ele tanto desejava: uma ruidosa risada, desconcertante. Desamparados, a troca entre ambos se dá muito mais pelo que não é dito do que pelo que verbalizam um ao outro. Identificação projetiva é a “língua (mãe)” usada.

Novo abuso; Martha assedia Dony “por todos os lados”, principalmente o lado de dentro, a perseguição o atormenta de dentro pra fora. Dony sustenta a ligação com ela; a sexualidade polimorfa, pueril, a ambivalência de vínculos de amor e ódio introduz ambos num relacionamento perverso. Martha o chama Bebê Rena, projetando nele seu objeto transicional da infância, que a acompanhava durante os episódios de violência doméstica a que era exposta, e o afaga e espanca como a uma pelúcia. Martha (uma mulher?) com seu mundo interno e externo (corpo, casa, trabalho, relações) extremamente fragmentados, caóticos, abusada e abusadora. Misturava riso e choro, acolhimento e agressão, revivia o trauma infantil na posição ativa e passiva, compulsão(ões) à repetição... Misturava inclusive as letras das palavras digitadas. Comédia e tragédia.

Ele responde ao ser chamado bebê, Martha o nomeava, e espelhava. Bebê, quase um balbucio, pouco importa a ordem das sílabas. Rena, da família dos cervos e veados, ligado a bi/homossexualidade. Um bebê que não distingue dentro e fora, vida e morte, fala por gestos/mímicas, em seu desespero pelo objeto, com atuações.  Dony, tocado/invadido por Martha em todo seu (falso) self, reage.

Rompe seu isolamento, usa objetos da sua “mala/bagagem”: “uma terapeuta trans”, seu público e sua família. Encarna sua verdadeira/insipiente identidade/perfil, conta sua história, denuncia os abusos, ganha um novo espaço/corpo-mente, e um olhar real, não virtual. Virtualidade, para além das comunicações online na bidimensionalidade das telas, representa comunicações virtuais/narcísicas com o outro, que, na realidade, se dão no inconsciente bidimensional, infinito nas projeções, introjeções, fantasias, cancelando a alteridade.

Por fim, Martha é presa, e Dony... novamente se vê preso no trauma. “Vocês poderiam pensar que eu não voltei lá, mas voltei, e não sei explicar”. Voltou ao traumático, tanático, sem elaboração, repetindo com/pulsão. “Quando você presenciar um abuso, denuncie!”, Richard denunciou o desamparo da geração “de A a Z”... Cuidemos dos nossos bebês...

Enviado do meu “smart”phone

Catherine Lapolli

Psicanalista/SPPEL/FEBRAPSI/IPA 

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

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