O filme Nosferatu (2024) e o erotismo brutal da figura do vampiro

Está em cartaz nos cinemas uma nova versão do clássico Nosferatu. Ele merece o reconhecimento de um importante filme dramático de vampiros, juntando-se a um grupo composto por Drácula de Bram Stoker (1992), Entrevista com Vampiro (1994) e A sombra do Vampiro (2000).
Popularizado especialmente pelo cinema, o vampiro é uma figura que se originou do folclore da Europa Oriental¹. Nas antigas lendas, o vampiro é uma pessoa que morreu, mas que a noite sai do seu caixão para aterrorizar e se alimentar do sangue dos vivos. Mas o criador do mito moderno do vampiro é o escritor inglês Bram Stoker, autor do romance Drácula (1897). Drácula é mais complexo do que os vampiros folclóricos, com motivações envolvendo amor. E a partir daí o vampiro nunca saiu de moda, em seus 128 anos de vida.
Este escrito vai falar sobre os significados psicológicos e psicanalíticos da figura do vampiro e em seguida, sobre o filme Nosferatu e os personagens Conde Orlok e Ellen.
Por que os vampiros atraem tanto?
Pela sua natureza sobrenatural ligada às trevas e seus grandes poderes. São mais fortes e ágeis do que qualquer pessoa, além de possuírem dons, como de transformar-se em animais, voar ou hipnotizar. Contudo, possuem fraquezas, como a intolerância à luz do sol. Mas os elementos fundamentais do vampiro são a necessidade de alimentar-se de sangue humano e a possibilidade de vida eterna. Para o casal de psicanalistas e escritores Diana e Mário Corso², os vampiros representam uma forma de negação lúdica de um aspecto tenebroso para os humanos: a morte. Eles não sofrem as mazelas do tempo, não ficam fracos e não adoecem. Vivem a eternidade, desde que não sejam expostos ao Sol e que nenhum caçador de vampiros enterre uma estaca em seu coração.
Destaco outro aspecto que torna o vampiro tão especial: sua grande carga erótica. Os vampiros contemporâneos são atraentes, sedutores e sensuais (vide Gary Oldman em Drácula de Bram Stoker ou especialmente Brad Pit, Tom Cruise e Antonio Banderas em Entrevista com Vampiro). A mordida do vampiro é o ápice da eroticidade. É um ato prazeroso tanto para o vampiro quanto para a vítima – como um êxtase sexual.
A mordida do vampiro pode servir como ilustração do funcionamento de um aspecto psicanalítico clássico. Freud apresentou uma importante teoria sobre os instintos humanos, que são derivados de forças que agem na natureza como um todo, chamados de pulsão de vida e de morte. Para os menos acostumados com esta teoria de valor clínico relevante, as pulsões de vida e de morte são forças instintuais indissociáveis; a de vida busca unir, criar e deixar a vida mais complexa, enquanto a de morte busca separar, desintegrar e transformar a complexa matéria orgânica na simples inorgânica (a decomposição da morte). Estes instintos básicos respondem a três princípios metapsicológicos (como leis da física, só que “leis” da psicologia): os princípios do prazer, da realidade e do Nirvana³. Interessa aqui o último, descrito originalmente por Barbara Low, aluna de Freud. O princípio do Nirvana se refere a parte do funcionamento instintual em que o prazer que ocorre está a serviço da pulsão de morte, como a voluptuosa mordida vampiro.
Conde Orlok e o sadismo oral
Nosferatu mostra o vampiro como um ser oral por essência. A questão central da sua vida eterna envolve a alimentação de sangue humano e da sua mordida. Este vampiro não tem qualquer genitalidade, o que indicaria um funcionamento mais avançado, mantendo-se fixado em atos do estágio oral.
A representação psíquica do Conde Orlok pode ser a de um bebê sádico. A teoria de Melanie Klein4 descreve uma etapa do desenvolvimento psíquico primitivo chamada de sádica oral, quando as ações do pequeno humano são impregnadas de voracidade e desejo de destruição, recorrendo ao centro das suas necessidades, a boca. Enquanto bebê morde o seio que o alimenta, Nosferatu suga o sangue de sua presa - sua fonte de vida e satisfação.
Mesmo que os vampiros não tenham relações sexuais, eles podem criar laços de amor e paixão, indicando uma tendência à genitalidade. Como se eles seguissem desenvolvendo suas vias libidinais, mas a vampiridade criasse uma fixação oral obrigatória. Assim, o vínculo dos vampiros, sexual e hedônico, culmina com a mordida e não com a cópula. Esta discussão psicopatológica ficcional fica completa quando pensamos que o Conde Orlok é mais primitivo que os outros vampiros dramáticos. Sua aparência bestial reforça isso. Ele não teria essa tendência genital, fixado à oralidade, que serviria para seus propósitos libidinais e agressivos. Esta teoria pode explicar a aparente ausência de enamoramento e excitação por Ellen. Ele só desejava sugar o sangue do seu peito pela eternidade, em uma relação mais maternal do que conjugal.
Ellen e o déficit paterno
A primeira cena do filme mostra Ellen em desespero, como que contivesse um grande vazio ou depressão, pedindo que um espírito a ajude. Uma voz da escuridão atendeu ao seu chamado oferecendo-lhe a vida eterna ao seu lado, o que foi prontamente aceito. A partir deste momento ela estava irrevogavelmentente ligada ao Conde Orlok. A sequência da cena fala muito da essência do componente erótico dos vampiros. Imediatamente após o pacto, sua respiração e gemidos indicaram que ela estava em uma atividade sexual “telepática” com o Nosferatu.
A história seguiu com a viagem do noivo de Ellen, Thomas, um corretor imobiliário, até a Transilvânia para vender um castelo para o Conde Orlok, que por sua vez queria eliminar seu rival romântico. Durante a viagem de Thomas, Ellen ficou hospedada na casa de amigos e passou a apresentar um quadro patológico severo, semelhante a uma epilepsia. Durante este quadro, nenhum familiar foi mencionado, mesmo que ela estivesse perturbando seus anfitriões. Isso reforça a ideia de um grande desamparo ligado às figuras parentais. Aparentemente, existe um vazio de mãe e especialmente de pai. O primeiro motivo para esta afirmação é que a figura de “salvação” é masculina. O segundo pode ser explicado através de Freud sobre o Diabo, usando-a por proximidade a Nosferatu. Discutindo o significado psíquico de Deus e do Diabo5, Freud disse que eles são contrapartes da figura do pai. O Diabo, porém, deriva de crenças em deuses primitivos e punitivos, como Javé do Antigo Testamento. Disse que o “Diabo é um sucedâneo do pai”.
Ellen é uma desamparada que no meio de seu desespero, aceitou a proposta de uma vida eterna de êxtase, fusionada ao amante paternal e maligno.
O filme Nosferatu
A primeira versão de Nosferatu (1922) é um clássico do cinema expressionista alemão e da cultura gótica. É importante mencionar que Nosferatu é um plágio de Drácula. Isso aconteceu porque a família de Bram Stoker negou ao estúdio alemão os direitos à obra. Mesmo assim, distinguiu-se e ganhou notoriedade.
A referência do subgênero é Drácula de Bram Stoker (1992). Ele invoca elementos do terror, mas existe uma forte atmosfera de aventura contra um inimigo sobrenatural e de drama romântico. Mas se Drácula pode ser sedutor, Nosferatu é uma besta em aparência e atitude.
Nosferatu é um filme de terror hard. O visual conta com o predomínio do cinza e de sombras. O enquadramento apresenta grandes cenários contrastando com pequenos personagens no canto da tela, provocando a sensação de desolação. Em alguns momentos, lembra o filme O Exorcista, como nas manifestações de Ellen aos efeitos da ligação com o vampiro. Em outros, invoca o terror splatter, mostrando sangue, vísceras e podridão – destoando do tom gótico e sombrio de Nosferatu.
Como história de ficção fantástica, provoca o inquietante. Freud descreveu este afeto ou experiência em O Inquietante6, referindo-se à sensação de mágico na vida cotidiana - como algum evento do dia-a-dia que é vivido como obra de Deus ou da fé; e também à experiência literária ou cinematográfica fantástica. O inquietante aparece em Nosferatu pela revelação gradativa do monstro e especialmente pelas dúvidas do vínculo entre Conde Orlok e Ellen. Ela está apaixonada ou hipnotizada? Ela vai retomar sua vida com Thomas depois deste caos ou abraçará a vida eterna com o vampiro? Estas incertezas contribuem para o inquietante - um estado de medo, curiosidade e excitação provocado pelo misterioso
A sensação de alívio no fim desta história surge com destruição do monstro, como ocorre com Drácula e nas suas diferentes versões cinematográficas. O mal é vencido, sem margens de dúvida, ainda que com muitas perdas. E no fim das contas, somos presenteados com Nosferatu, o mais sanguinário e monstruoso dos vampiros.
*Os psicanalistas, psicanalíticos ou pensadores das teorias da mente que são fãs da fantasia fantástica precisam ler O Inquietante de Freud!
Referências
1- Em Busca de Drácula e Outros Vampiros, Raymond McNally e Radu Floresco (1994)
2- A Psicanálise na Terra do Nunca, Diana L. Corso e Mário Corso (2006)
3- O Problema Econômico do Masoquismo, Sigmund Freud (1924)
4- A Importância da Formação dos Símbolos, Melanie Klein (1930)
5- Uma Neurose do Século XVIII Envolvendo o Demônio, Sigmund Freud (1923)
6- O Inquietante, Sigmund Freud (1918)
Diogo de Bitencourt Machado
Analista em formação - SPPEL
1 Comentário
Jose Francisco Rotta Pereira
25 diasResponder