O Olhar como Espelho Reconstrutivo!

Em “O Espelho”, Machado de Assis, 1882, antes da criação da psicanálise, Jacobina apresenta seu “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, no caso, duas “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro”. 

Aprovado como Alferes, passou a ser motivo de orgulho e elogios e, também, alguma inveja. Familiares o presentearam com a farda e começaram a chamá-lo de “Senhor Alferes”; tia Marcolina o recebeu para 30 dias de bajulações. Entretanto, uma intercorrência familiar deixou-o solitário no sítio; até os cães foram levados pelos “escravos” em fuga. Depois de poucas horas, o estado anímico de Jacobina era de profunda desesperança (...) “achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. (...) à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. (...) Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”, equivalente à expressão regional gaúcha: abobado da enchente! “(...) Dormindo, era outra coisa. (...) Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam Alferes”.  

Os sonhos, produto da alma interna, apontaram o caminho, Jacobina vestiu a farda e “olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro”. 

Nós, gaúchos, temos orgulhosas fardas; alguns imaginam que melhor viveríamos se apartados. Entretanto, frente ao desamparo da tragédia, descobrimos a importância do espelhamento do reconhecimento, da solidariedade, da “pertinência” (...) no processo reconstrutivo das próprias potencialidades. O “Alferes não pode eliminar o homem”. 

Foi o sobrevivente olhar de Josefina que me sustentou na minha primeira grande enchente emocional. Ao me ver, ela enxergava o filho perdido; eu, frente ao azulado olhar da avó, enxergava meu pai. Os olhares devolvem a(à) esperança. Sejam das almas de fora do estado/província/condomínio; sejam dos sonhos da alma interna, segundo o esboço machadiano.

 

Hemerson Ari Mendes

Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA

(Os textos publicados são de responsabilidade de seus autores)

 

P.S. Machado de Assis nasceu em 1839, Freud morreu em 1939, foram contemporâneos por mais de 50 anos. Nada indica que tenham se lido; ainda em 1882, Machado escreveu “O Alienista”; Freud, por sua vez, era apresentado por Breuer ao caso Anna O. e pela irmã à Martha. 

2 Comentários
Beatriz Hax Sander
127 dias
Lindo texto Hemerson ! Te lendo me lembrei do filme “ O náufrago “ onde o ator fez um rosto humano, que lhe olha/espelha e acompanha na solidão da ilha/alma. Este rosto o ajudou a sobreviver ! Nossas fardas e tradições se manifestam neste momento, como espelhos do que éramos, para ajudar-nos na reconstrução de nós mesmos , das cidades e do estado. Parabéns

Responder
Beatriz Hax Sander
127 dias
Lindo texto Hemerson ! Te lendo me lembrei do filme “ O náufrago “ onde o ator fez um rosto humano, que lhe olha/espelha e acompanha na solidão da ilha/alma. Este rosto o ajudou a sobreviver ! Nossas fardas e tradições se manifestam neste momento, como espelhos do que éramos, para ajudar-nos na reconstrução de nós mesmos , das cidades e do estado. Parabéns

Responder
Deixe um comentário