Finados, os lutos e as saudades

“Quando é um ser amado e íntimo que está morrendo, ao lado do horror frente a extinção da vida, há um rompimento, uma ferida espiritual, que, como a ferida física, às vezes cicatriza e às vezes é fatal (…)”, Tolstói, em Guerra e Paz.
Quanto às feridas físicas, tenho a predisposição a desenvolver queloides. Não consigo me ver sem eles, fazem parte da minha identidade. As cicatrizes da alma não são diferentes. Elas nos (de)limitam, definem e, também, empurram para o desenvolvimento.
Velórios e sepultamentos nos diferenciam de quase todos os animais. São fundantes da civilização. O ato de velar e enterrar os mortos nos acompanha desde sempre; há 60000 anos existiam rituais de sepultamentos, com a utilização de presentes para os mortos. Eles são parte do processo de elaboração das perdas.
Finados, o feriado dedicado à lembrança dos mortos, é a necessária continuação de algo que não se finaliza de maneira definitiva. Não é incomum, no momento da perda, não se estar em condições de iniciar o doloroso, necessário e salutar processo de elaboração. Há pouco, em função da pandemia, os rituais de sepultamentos foram impedidos; a obstrução/restrição ao espaço do choro, da solidariedade, do consolo, da lembrança (…) criaram feridas de difícil cicatrização; necessitando de mais tempo e apoios para a boa elaboração. Paradoxalmente, relações nas quais predominam afetos positivos são mais facilmente elaboradas quando comparadas com as ambivalentes ou negativas; nas últimas, os sentimentos de culpa se intensificam.
Algumas perdas trazem à tona antigos lutos não elaborados, que estavam anestesiados à custa de dispendiosos gastos de energia, da ocupação de espaços mentais e, consequentemente, impedindo um viver “suficientemente bom”. Lutos anteriores - como as perdas do útero com sua climatização e suprimentos instantâneos; da crença que o entorno é uma criação sua; do seio que desapareceu; pelas interdições sexuais dos(as) pais/mães; pelo corpo infantil; pelos pais onipotentes e infalíveis; pela perda dos animais de estimação e todos os seus investimentos afetivos; dos colegas de escola que mudam; da cidade natal que ficou para trás; dos avós, pais e – provavelmente, a mais devastadoras das perdas – dos filhos (...) - tendem a intensificar e se misturarem com as novas perdas..
Plagiando Freud, atrevo-me a dizer que a civilização nada mais é que um precipitado de queloides que dão contorno – ou que contornaram – as dores das perdas reais ou fantasiadas da humanidade. Se sobrevivermos e elaborarmos os lutos, as presenças-ausências dos que morreram, somadas a qual presença queremos deixar na nossa ausência, emprestarão o colorido que progressivamente substituirá à escuridão causada pela dor das perdas.
Viver é manter vivos os que morreram e seguem nos constituindo; neste sentido, Finados nos conecta com a tristeza pela morte dos amores e a plenitude pela constatação de que vivos estarão enquanto presentes na mente de alguém.
Os ventos de Finados também nos impregnam com os aromas associados à saudade, palavra tão cara para nossa língua. Perda, falta, distância e amor estão no amalgama do intraduzível sentido. Indissociável da etimologia latina que sobrepõe solidão, saúde e saudar.Enfim, o feriado de Finados é uma nobre atitude (Antígona/Sófocles) na luta para não se tornar apenas uma filha/cultura degenerada.
Hemerson Ari Mendes
Psicanalista SPPEL/FEBRAPSI/IPA
2 Comentários
Elizabeth
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Sandra
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