Virgínia e Adelaide

“O cinema é uma incursão guiada ao inconsciente”

Luis Buñuel

No dia 03 de maio de 2025, no Teatro Municipal de Rio Grande-RS, em evento promovido pelo Projeto de Cinema, Filosofia e Psicanálise da FURG, uma platéia repleta assiste a Vírgínia, (finalmente) “primeira bailarina” do Municipal, em pas de deux com Adelaide... Vírgínia Leone Bicudo, uma das primeiras sociólogas do Brasil, e primeira pessoa a se deitar num divã na América Latina, acompanhada por sua analista - primeira psicanalista no nosso solo - Adelheid Koch, arrancaram aplausos, mesmo que “virtuais”, no tempo e no espaço.

Os primeiros créditos... “Todos os nomes são reais, tudo o mais é ficção”. Jorge Furtado e Yasmin Thainá nomeiam Virgínia Bicudo, primeira analisanda no nosso país, uma mulher negra, não médica, e Adelheid Koch a primeira psicanalista radicada no Brasil, uma mulher branca, européia, judia, refugiada por conta do nazismo. Tudo mais é ficção...(?)

O pano de fundo, em branco e preto, a história do Brasil, desde a escravatura, passando pelo início do século XX, e a história mundial, nos idos dos anos 1930 até a segunda metade do século. Em branco e preto, como as protagonistas, que têm estas histórias como suas, e têm nessas histórias parte das suas vidas interrompidas, impedidas. A abertura do século, promissora, com avanços econômicos/tecnológicos, com o modernismo – aqui a brasilidade da semana de arte moderna de 22 - e sua liberdade de expressão, com o surgimento do cinema junto com o da psicanálise, com o nascimento da IPA e de Virgínia no mesmo ano, inauguram uma nova linguagem, uma narrativa vanguardista. Virgínia e Adelaide, orquestrado por Jorge Furtado e Yasmin Thainá, é uma obra moderna(?), certamente impressionante, sobre psicanálise, cinema, história, sobre nós (ou quem puder se ver na tela, desfrutar sua catarse)...

Os primeiros passos das personas, titubeantes mas muito bem executados, na sua primeira cena juntas, fundante da relação como numa análise, marcam o ritmo e a tônica do que virá. O filme todo terá essas duas personagens representando muitas outras, seus objetos internos e externos, o mundo interno e a cultura se imbricando, ao longo de um processo analítico e da construção artística. Virgínia busca Adelaide, busca um outro que a acolha, que a acompanhe em seu sofrimento, que provoque movimento: “o que é vivo muda”. Adelaide, embalando sua dor do exílio com seu objeto transicional - músicas de sua terra/cultura - se consola e, no contato com Virgínia, se reencontra com um objeto que não estava perdido, a psicanálise, e que a trouxe para o Brasil.

A psicanálise é a arte do encontro, especialmente se houve muitos desencontros pela vida, com objetos ausentes ou decepcionantes. As necessidades do Eu, simbolizar a si mesmo a partir do encontro com um outro capaz de uma resposta sensível; ligar pulsões desligadas; acolher e (re)construir/ressignificar a própria história; espelhar sentimentos; acalmar o desamparo repetido - que assim se torna traumático-; impulsionam uma em direção a outra. Idiomas diferentes são traduzidos pela linguagem comum afetiva, pela relação corpo a corpo, pela comunicação inconsciente, pela esperança. A narrativa e imagem de Virgínia ganham figurabilidade e se soltam na escuta de Adelaide, que se aguça.

Virgínia e Adelaide, nomes herdados - essa etiqueta que carrega o que lhe está reservado, apresentam uma à outra. Virgínia, nome da avó escrava, que gerou seu pai Teófilo Bicudo a partir do ventre livre, batizado com o sobrenome do dono da fazenda como era dado aos escravos nascidos na “propriedade”. Ou nem tão livre, porque não se sabe quem foi o avô de Virgínia - o próprio dono da fazenda? A mãe, italiana migrante para fugir da fome na Europa, perde uma irmã na viagem de navio (pela/s fome/s) e talvez tenha perdido o que nem soube que tivera. Encontram-se trabalhando na fazenda de café (o acolhedor cafezinho) do Sr Bicudo, casam-se e migram para a próspera São Paulo. Herdam significantes, mais do que posses, e transmitem criptas transgeracionais. Não se podia falar sobre sofrimentos que não seriam entendidos frente a estes traumas maiores como a morte; silenciavam a atitude dos próprios negros sobre o racismo, dissertação de mestrado da acadêmica[1] e vivência da menina em sua própria casa. A avó materna elogiava Virgínia por ser a mais parecida (entre as 4 irmãs) com a mãe branca, e a mais distante do pai, negro retinto. O racismo tem espectro, do negro retinto ao escurinho, às sombras. “Nós somos livres” repetia este pai, que comprou a alforria de sua mãe, mas temia pela sexualidade de Virgínia, nem tão livre assim; negra antes de mulher (como a avó) - a cor impedindo/ameaçando o ser, inclusive, e mais intensamente, sua intimidade. Comprar alforria precisa ser traduzido para Adelaide, que nunca imaginara esta possibilidade, já que suas posses não foram suficientes para garantir sua liberdade, e certamente para Virgínia, que poderia ter seu corpo vendido ou abusado, de qualquer forma coisificado. O branqueamento na aparência, na postura, era o desejo inconsciente dos pais vivido pela menina, na pele e na alma, o inconsciente tem cor! O pai, apesar do bom e suficiente desempenho acadêmico, não conseguiu realizar seu sonho de ser médico em dez tentativas, tornou-se funcionário público concursado: negro não pode ser doutor – por quê? -, a pergunta que (não) cala. Virgínia segue por educação sanitária (ao invés de medicina), sociologia e psicanálise; um caminho que começa pelos carentes (termo que Adelaide também não conhecia com este significado, e ganha outro sentido na relação das duas), segue pela sociedade e se “interioriza”, com e como a psicanálise delas.

Adelaide, nome da avó que transmite uma história, a segurança das raízes, e nem se poderia imaginar, o perigo de morte. Adelaide, médica como o pai (que Virgínia e Teófilo não puderam ser), se sabia mais livre do que se conheceu a partir do nazismo, não mais se (re)conhecendo e, especialmente, não sendo reconhecida pelo que era, ou antes ameaçada de extinção junto com seu povo. Apesar do desejo de ficar em Berlim e arriscar a vida, não poderia arriscar o fruto de seu ventre, a vida das filhas; era hora de partir. Adelaide, considerada simples e amorosa pelos seus pares psicanalistas, remete a outra tradução de simples, que não é sinônimo de fácil, e sim de maestria, virtuose – psicanálise parece simples em mãos hábeis. Talvez Adelaide não tivesse símbolos para pensar dragões recentes na sua vida e ancestrais na de Virgínia, mas era continente, o que ganhou novas texturas no trabalho com sua paciente.

A imagem do corpo não provem de um dado anatômico natural, como o esquema corporal; ela se constrói na história do sujeito. (Nogueira, 2021, p.101)

O encontro entre elas, em sua assimetria, reescreve muitas histórias: Virgínia ganha espaço para seu eu e para sua dor, um “ventre livre” para sua alma num divã vermelho, um espaço inaugural para a negrinha, que ela nem sabia o que era até ouvir (e se ouvir). Adelaide, ao oferecer continência para Virgínia, sua primeira paciente no Brasil, inicia seus passos para tornar-se uma das fundadoras da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, inspiradora de muitas outras pelo país, reencontrando seu lugar de analista, um cristal que não se quebrou na noite escura da história do século XX, a dança pode continuar...

O dueto entre elas não é capoeira nem sinfônica de Berlim, é chorinho/samba, uma harmonização entre os ritmos afro e europeu numa composição brasileira; não é competição de sofrimento, é criação. Virgínia baila, se experimenta, enquanto conquista um repertório que não tinha sobre seu corpo, sua sexualidade, seus vínculos. Adelaide apura a escuta, toca sentimentos novos, se escuta de outra forma, perde seu sotaque carregado ao longo da relação analítica de quase dez anos que viveram. E para além, até nossos dias, a relação institucional que se gerou entre elas deixou marcas, fundações e interiorizações da psicanálise (pioneiras da Sociedade Psicanalítica de São Paulo, retomada da Revista Brasileira de Psicanálise, fundação do Instituto Virgínia Bicudo da Sociedade Psicanalítica de Brasília). As sessões se seguem com o diálogo analítico, suas palavras e não palavras, seus silêncios, suas pautas, breves e pausas, e com toda experiência emocional, a musicalidade do vínculo. O cuidado, crescente, se faz ver, ouvir e sentir nos atos falhos e nos atos complexos, nas defesas, nas resistências, de forma delicada, clara e empática, na angústia sentida, compartilhada e nomeada na troca entre elas. As mentes das duas, representadas por imagens dinâmicas e em cores, durante e após as sessões, sobrepõe processo primário e secundário, transferência e contratransferência, o mundo interno de uma e de outra se fertilizando. Sonhos não sonhados ganham relevância: seja o trauma que não tinha representação, a falta, a ameaça de aniquilamento; seja os desejos que foram impedidos, ser amado, ser (re)conhecido. Uma vista pela outra no que não foram antes: Adelaide vê Virgínia mulher e capaz, e levou tempo para ver sua dor; Virgínia vê Adelaide analista, mãe, pianista e pioneira, importante desde sua chegada (para o país). A psicanálise é cara às duas.

A simbolização de uma imagem do corpo depende da aceitação pelos pais para que possa ser reforçada positivamente, garantindo a humanização da criança. (Nogueira, 2021, p.100)

Virgínia vai ganhando mais protagonismo nesta obra, não só por ser paciente, o que é esperado no setting, mas por um elemento central neste contexto: o filme recoloca Virgínia numa posição que lhe foi negada pela história, também da psicanálise, brasileira. O negro não é neutro, denuncia a “não neutralidade” de todos, psicanalistas ou não. Negro não pode “não ser” tudo que lhe é imputado, experimentar a potência vital de vir a ser; é inserido numa rede de significantes que o constitui, componentes de um superego herdeiro da cultura, que o antecede e o interdita. O narcisismo inaugural é diferente na sua história pessoal; as pequenas diferenças, palavras que aproximaram Virgínia de Adelaide, tornam-se, artificialmente e à força, grandes diferenças; o racismo se sustenta na desumanização, na cisão, na desmentida, na projeção do desamparo universal no diferente, uma escravidão do corpo social, atemporal. O corpo negro não pode ser criado/simbolizado pelo seu próprio sujeito, impedido de su-jeito, torna-se uma criação social alheia e contrária aos desejos do seu portador, essencialmente contrária a própria vida do negro.

Virgínia consegue, com Adelaide, sonhar, integrar-se, e também aprender a hora de partir da análise pessoal e do ambiente “protegido” (como fora sua casa até a idade escolar). Ofendida em sua pele e alma, chamada charlatã alto e mal som publicamente pelos doutores brasileiros, “dotados”, no 1º. Congresso Latino-americano de Saúde Mental sediado na Faculdade de Medicina da USP, agora sabia que estava discutindo o racismo estrutural, o mesmo que vitimara o pai. Abalada como Adelaide outrora, pensou não mais ser, morrer. Novamente comprou a briga e a liberdade: o que é vivo muda. Enriquece sua já sólida e consolidada formação como analista didata com um período em Londres -1956/1960, introjeta mais psicanálise e projeta/expõe sua negritude. Fundadora da Sociedade Psicanalítica de Brasília, batizou seu Instituto, outra interiorização da psicanálise, gerada no seu interior. Adelaide trouxe para nosso meio a formação analítica oriunda de Berlim, nosso preservado modelo Eitingon de formação da IPA; Virgínia carregou em sua bagagem a análise condensada para Brasília, que viabilizou a formação afastada dos grandes centros, levou a psicanálise mais longe. Virgínia produziu muitos trabalhos psicanalíticos e, se não foi considerada inovadora na teoria psicanalítica, ela era a própria inovação, uma mulher negra, não médica, psicanalista, movimentando, amplificando os sotaques, colorindo o cenário psicanalítico brasileiro e mundial.

Os créditos desta obra cabem a Jorge Furtado e Yasmin Thainá; o cinema é a arte do corte do diretor, que foi preciso, como preciosas as atuações das atrizes Sophie Charlotte e Gabriela Correa. Jorge e Yasmin condensaram, como num sonho, uma extensa pesquisa nos arquivos da história brasileira, mundial e da psicanálise, e nos arquivos pessoais da equipe sobre suas experiências analíticas. Os devidos créditos por seus trabalhos, a Virgínia e Adelaide, finalmente foram reparados, não é ficção! Aos psicanalistas fica o desafio da arte da ligação; ligação com o paciente, com seu sofrimento, ligação entre o consciente e o inconsciente, entre o corpo e a mente, entre os representantes e os afetos, entre os pensamentos, entre o eu e a cultura, entre o que foi cindido, desmentido, traumático; a pulsão des-ligada. E a todos fica o convite para desfrutar esta grande obra, e para sonhar sonhos ainda por sonhar...

Nos olhos do jovem

também o brilho de muitas histórias.

E não há quem ponha

um ponto final no rap

é preciso eternizar as palavras

de liberdade ainda agora.

Conceição Evaristo, 2017

 

Bibliografia consultada

Nogueira, I.B. (2021) A cor do inconsciente – significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva.

Frausino, C.C.M. (2020) Um olhar sobre Virgínia Leone Bicudo. Revista Brasileira de Psicanálise, 54 (3).

Tauszik, J.M. (2020) A atualidade de Virgínia Leone Bicudo. Revista Brasileira de Psicanálise, 54 (3).

Paim Filho, I.A. (2021) Racismo – por uma psicanálise implicada. Porto Alegre: Artes e Ecos.

Evaristo, C. (2017) Poemas da Recordação. Rio de Janeiro: Malê.

 

 

0 Comentários
Deixe um comentário