Expectativa de caos, resiliência e maternagem – A psicanálise de Lilo & Stitch

 

Crianças e adultos nostálgicos aguardaram com expectativas o lançamento do live-action de Lilo & Stitch. A “febre do Stitch”1, o monstrinho fofo que estampa camisetas, mochilas, brinquedos e tantos outros objetos do público infantil, justificando seu estudo psicanalítico.  

Eu sabia apenas superficialmente da existência de Stitch. Quando percebi essa febre e senti o entusiasmo da Rafa, minha filha de seis anos, quis conhecer o personagem. Além da boa experiência de ver um bom filme, observei que Lilo & Stitch tem significados psicológicos marcantes.    

Serão realizadas algumas observações psicológicas e psicanalíticas sobre o filme e os personagens Stitch e Lilo. Como existe há duas décadas e é fidedigno ao filme, a versão original também foi fonte destas observações. 

 

O universo Lilo & Stitch

É originalmente um desenho de 2002 da Disney. Foi um grande sucesso que serviu para revitalizar o estúdio, que vinha de um período pouco criativo2. Caiu nas graças das crianças da época, que assistiram no cinema e no DVD. 

Vieram algumas derivações que não tiveram o mesmo sucesso do antecessor, completamente diferente do que o filme recém lançado está provocando. Foram os filmes Stitch! O filme (2003), Lilo e Stitch 2 – Stitch deu defeito (2005) e Leroy e Stitch (2006); o curta A origem de Stitch (2005); e as séries Lilo e Stitch: The series (2003), Stitch! (2008) e Stitch & Ari (2017)

O público atual inclui principalmente crianças, seus pais e os nostálgicos - as crianças em 2002 que hoje estão na volta dos 30 anos. O sucesso que ocorre parece estar ligado ao aproveitamento de uma história rica, um forte marketing e uma nova versão em live-action bem feita.

A história envolve ação e comédia infantil. Ela traz ficção científica com alienígenas e naves, mas provoca uma ruptura de foco quando mostra a triste realidade de uma família despedaçada pela perda dos pais. Contrasta uma ficção mirabolante com uma realidade em que é possível a perda precoce dos pais. 

Depois que os pais morreram em um acidente, restaram Lilo e sua irmã Nani. Esta é uma adolescente que precisou substituir os pais, trabalhar e cuidar de Lilo, sem sucesso. Esta é a base do enredo de Lilo & Stitch, quando então surge o alienígena Stitch na vida destas irmãs.

 

Stitch

Seu nome original é Experimento 6.2.6 e foi desenvolvido para destruir planetas. Seu criador, o alienígena Jumba Jookiba, foi julgado pela Federação Intergaláctica pelo crime de genética experimental. Orgulhoso de sua criação, disse que 6.2.6 resiste a tiros e a fogo, é capaz de carregar três mil vezes seu peso, tem o pensamento de um ultra computador, com o propósito de destruir tudo o que toca. Criador e criatura foram sentenciados à prisão, mas Stitch, ou melhor, Experimento 6.2.6, conseguiu fugir em uma nave que acabou caindo na Terra, mais exatamente no Havaí.

Na sua chegada à Terra, ele foi atropelado por um caminhão e levado para um abrigo de animais como morto. No outro dia, Lilo e Nani foram ao local com intenção de adotar um cachorro. Enquanto passeava pelo abrigo, Lilo o encontrou. Ele tentou não parecer agressivo, imitou a saudação de Lilo e depois a abraçou. Mostrou sua capacidade de pensar, a consciência da sua agressividade e mais especificamente, de sua postura agressiva. Ele foi então adotado e recebeu o nome de Stitch, invenção de Lilo.

Quando Stitch se deu conta que não estava em uma grande cidade, lamentou, pois não teria tanto a destruir. Mas apesar do seu potencial de violência, o máximo que ele fez foi bagunçar uma casa, destruir castelos de areia, colocar sorvete na cabeça de um cachorro e vibrar quando viu uma notícia de incêndio. Tudo muito longe de assassinar a população de um planeta. Quando destruiu algumas coisas, Lilo disse que ele estragava tudo o que tocava e perguntou, “você não sabe fazer de outro jeito?”. Stitch entrou em um modo reflexivo, demonstrando a presença de estruturas psíquicas regulatórias e vinculares.  

O tema agressividade faz parte das questões essenciais do psiquismo humano, essencial à compreensão psicanalítica. Em “Mal Estar na Civilização”3, Freud discutiu a angústia do ser humano contemporâneo. Esta angústia é especialmente ligada ao sentimento de culpa, que por sua vez é uma reação a agressividade. De um lado busca amar e ser amado pelos seus colaboradores e por seu objeto sexual (mantida a tradução do texto original) e de outro lado precisa de alvos para sua agressão, principalmente infratores ou algum grupo externo. Então, a agressividade é um instinto natural e autônomo.

Stitch foi criado para destrutir, mas o desenrolar da história mostrou que ele pode manter uma relação ajustada e construtiva com Lilo e com sua “ohana” (esclarecimento adiante). Sua disruptura com a destruição passa uma mensagem de que aquilo que nasceu errado pode se ajustar. 6.2.6 foi criado na expectativa de destruição, mas Stitch a transformou em carinho, amizade e cuidado. 

Creio que essa mudança ocorreu por três aspectos. O primeiro é que o experimento não teve o resultado proposto por seu criador, pois Stitch é capaz de conter e sublimar sua agressividade; o segundo é que ele tem uma configuração psíquica pré-estabelecida que incluí o espaço para o papel do outro. A versão em desenho mostrou isso quando ele leu “O Patinho Feio”, parecendo identificar a ideia de família, irmãos, cuidadores e solidão que aparecem no conto infantil; o terceiro é a sorte de ter encontrado alguém tão capaz de cuidar como Lilo. 

 

Lilo

É a menina de cinco anos que co-protagoniza a história. Sua primeira cena representa bem sua configuração psicológica: ela chegando atrasada para uma apresentação de ula (dança havaiana), aguardando por sua irmã que não conseguiu chegar. Foi humilhada e excluída pelas colegas, até que reagiu a uma provocação agredindo uma delas. 

Ela chegou atrasada, foi empurrada pela colega e empurrou depois (de cima do palco...), mas dança bem e que guriazinha querida! Aí começam as virtudes da Lilo. É bem provável que quando seus pais eram vivos, a família tinha uma estrutura suficientemente boa. Este conceito bem conhecido em psicanálise, desenvolvido por Winnicott4, representa a importância dos cuidadores em suprir a necessidades básicas de um ser humano. As poucas informações sobre seus pais e especialmente o seu bom funcionamento mental indicam que ela recebeu um bom suporte. Isso pode ter ajudado a formar sua importante resiliência, que é a capacidade de manter o funcionamento psíquico em equilíbrio e com mecanismos mais maduros possíveis, mesmo diante dos traumas, ausências e conflitos. 

Mesmo com a perda dos pais, desorganização do ambiente e insuficiência da irmã, Lilo tem boa estrutura mental. É empatica, curiosa, inteligente e amorosa. Ela teve crítica do desajuste de Stitch e conseguiu, pacientemente, ensiná-lo limites e como ser pessoa. 

Stitch é o alienígena e Lilo é a conexão com o mundo real, de carne e osso, de perda e dor. Seus cinco anos deixam tudo mais exposto. Lilo passa duas mensagens: a primeira é sua grande capacidade materna, de cuidar de alguém; a outra é de que o sofrimento das perdas existe, mas há esperança de superação, representada especialmente pela sua resiliência.  

 

O filme Lilo & Stitch

É emocionante e marcante. Combina construção esteticamente bonita com importantes significados. Mistura ficção científica com drama familiar. Os personagens principais tinham um destino - destruir no caso de Stitch e sofrer no caso de Lilo – mas os transformaram, respectivamente, em amabilidade e maternagem.  

Dá para “reviver” o luto em alguns momentos, como quando Lilo foi capturada pelos alienígenas; quando Stitch pareceu morrer; quando Stitch foi condenado a voltar para sua prisão intergaláctica; ou na conclusão do filme, quando aconteceu a separação necessária de Nani, que foi fazer faculdade em outra cidade, enquanto Lilo ficou sob os cuidados de vizinhos amigos para um dia as duas voltarem a viver juntas. 

A aventura de perseguição dos alienígenas contra Stitch pode ser até empolgante, mas o mais emocionante do filme são as dificuldades de Lilo e Nani e suas tentativas de superá-las e especialmente a relação entre Lilo e Stitch, que incluiu diversão, simpatia, educação, repreensão, proteção e coragem.

O arremate das mensagens identificadas no filme envolve um significado de “ohana”. Lilo mencionou o termo pela primeira vez após uma das aprontadas destruidoras de Stitch, quando não quis devolvê-lo para o albergue de animais: “Ohana quer dizer família. Família quer dizer nunca abandonar ou esquecer”. É um termo da cultura havaiana que se refere à “família”, enfatizando pertencimento e apoio mútuo5. Lilo deixa bem claro que significa uma família ativamente presente, mesmo diante de obstáculos e não desampara. A capacidade de Lilo a premiou com a permissão da Federação Intergaláctica para Stitch ficar e que ela tivesse uma oportunidade de reorganizar sua ohana.

 

Referências

  1. Lilo & Stitch se torna a maior bilheteria de estreia de 2025. Revista Crescer. https://revistacrescer.globo.com/entretenimento/filmes-e-tv/noticia/2025/05/lilo-and-stitch-se-torna-a-maior-bilheteria-de-estreia-de-2025.ghtml
  2. Crítica: Lilo & Stitch (2002). Plano Crítico. https://www.planocritico.com/critica-lilo-stitch-2002/#google_vignette 
  3. Mal Estar na Civilização. Sigmund Freud. 1930.
  4. Objetos transicionais e fenômenos transicionais. Donald Winnicott. 1951.
  5. Wikipédia: “ohana”. https://pt.wikipedia.org/wiki/Ohana 

0 Comentários
Deixe um comentário