Empatia: a palestina e o judeu que falavam a mesma língua!
Haibaa é uma mãe palestina. Até chegar ao Brasil, no fim da adolescência, perambulou por países do Oriente Médio, fugindo de guerras como quem busca a paz. Chegou ao sul do Sul — onde, como em boa parte do Brasil, judeus, árabes (em sua maioria, libaneses católicos) e palestinos muçulmanos convivem em harmonia. Têm laços de amizade, são parceiros comerciais, e seus filhos frequentam as mesmas escolas católicas ou leigas.
Há alguns anos, Haibaa — nome fictício, usado com autorização — decidiu voltar para a Palestina. Seus filhos estão entre a infância e a adolescência. Ela e o marido acharam importante que eles mergulhassem na cultura dos antepassados. A imersão visava, sobretudo, um maior contato com a língua e com a religiosidade. O plano era viver dois anos em Ramallah e, depois, retornar em definitivo ao Brasil.
Chegando a Amã, na Jordânia, seguiriam por terra até Ramallah, atravessando Israel. A fronteira é tensa, burocrática, e a presença de soldados fortemente armados assusta — especialmente as crianças, que ficaram ansiosas. Após horas de espera, Haibaa e os filhos foram separados para revista. Ainda estavam no mesmo campo visual e podiam se comunicar, mas a cena foi o suficiente para desencadear o desespero: choros, gritos, medo.
Foi então que Haibaa, intuitivamente, passou a falar em “brasileiro” com os filhos — assim ela nomeia a língua do país que a acolheu. Imediatamente, pela primeira vez, percebeu que alguém a olhava com humanidade. Um jovem judeu da alfândega se aproximou e, em português, começou a conversar. Era de São Paulo. Quis saber de sua história, dos caminhos que percorreu, dos seus objetivos. De repente, milênios de animosidade se dissiparam como entulho sem dono — não pertenciam àquele que falava brasileiro.
Ela, os filhos e o jovem paulista se acalmaram. Alguns funcionários não entenderam o que se passava, e um deles chegou a resistir na entrega dos passaportes. Mas, naquele momento, Haibaa tinha um aliado: o judeu que falava brasileiro. A partir daí, sempre que foi parada em uma barreira, ela falava em “brasileiro” com os filhos. Realidade ou fantasia, não importa: passou a sentir-se menos ameaçada.
Desencontros emocionais costumam ser frutos do diálogo de surdos — não pela ignorância da língua alheia, mas pela recusa em olhar. É a surdez cega. É a cegueira de quem não sente, não toca, pois teme que o outro seja uma bomba humana. Quanto menos integrados estão nossos sentidos, mais primitivas se tornam nossas relações.
E isso não ocorre só entre judeus e palestinos: pode acontecer dentro de um mesmo povo, dentro da mesma família. Por que pessoas que poderiam matricular seus filhos na mesma escola em um país, se tratam como inimigas em outro? Qual seria o esperanto possível — a língua universal capaz de nos unir nas diferenças?
Terêncio, com seu “Sou homem: nada do que é humano me é estranho”, talvez tenha lançado a pedra angular da empatia. Foi ela que se ativou ao escutar a língua-mãe e ver, em Haibaa, a mãe Sara — não a inimiga potencialmente explosiva.
Ser empático não é uma decisão técnica. É algo que acontece — e, quando acontece, é preciso estar disponível para vivê-lo. O jovem judeu não escolheu ser empático com a mãe palestina: foi atravessado por essa experiência. Ele não estava inteiramente formatado para a surdez afetiva. Quando ouviu a mãe e se identificou com os filhos, ele rompeu com a racionalidade empobrecida dos protocolos que tentam conquistar segurança sufocando sentimentos.
P.S. Este texto foi escrito há dez anos. A tragédia do terrorismo, das mortes, dos reféns, da guerra — e, novamente, da fome — mostra que, neste momento, a Babel da morte tem prevalecido sobre a empatia. Ainda assim, os esforços precisam seguir: que nossos investimentos simbólicos e políticos continuem buscando — e pressionando — pelo esperanto da paz e da vida.
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