A arte do convite

IV Mostra de trabalhos do Instituo Sérgio Abuchaim

A arte do convite

Desenho de gato

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A IV Mostra do Instituto de Psicanálise Sérgio Abuchaim da Sociedade Psicanalítica de Pelotas, no ano de 2025, se inicia pela arte do convite. Convite expressão do trabalho da Comissão organizadora, que se reúne longamente para pensar os autores convidados, os coordenadores de mesas, o público alvo, o tema/desenho para atrair interessados, e como vincular todas estas personas para que a troca/experiência desejada acontecesse. A arte do convite figurou em toda dedicação dos envolvidos diretamente - analistas em formação - vivida como parte da formação e do amadurecimento pessoal e institucional de cada e de todos, e foi (co)respondida com entusiasmo pelo público aberto (em todos os sentidos) que prestigiou o evento.  A Comissão – Thiago Donassolo, Letícia Farias, Juliana Juliano, Diogo Machado e Isadora Zorzella –, com o privilégio e a responsabilidade confiados pelo diretor do Instituto, Bruno Salésio, e pela atual Diretoria da SPPel representada pela presidente Beatriz Hax Sander, teve o cuidado de convidar colegas analistas em formação de diferentes turmas para coordenar – Luis Roberto Rocha e Thalita Salomão Alves – , e para apresentar seus trabalhos – Ana Nascimento, Juliano Porto, Priscila Rotta, Sérgio Lopes e Tatiana Dame -, além de uma colega da SBRJ, Bárbara Andrade. Esta Mostra, encontro da experiência prévia de alguns com o entusiasmo dos mais novos integrantes e participantes, mostrou suas obras, arte e sensibilidade. O resultado transcendeu as expectativas!

A arte do convite, propriamente dita, escolhida para a divulgação da IV Mostra é a gravura “Leda e o Cisne”, uma das pinturas mais antigas e maiores da Coleção da Academia Real, de autor desconhecido, datada (com muita dificuldade e controvérsia) entre 1530-1540, pendurada na Sala da Assembléia Geral, Londres.

Esta arte valoriza a ligação entre o clássico e o contemporâneo; entre a Mostra e os eventos maiores, como o 31º. Congresso Brasileiro de Psicanálise cujo tema é “Sexualidade – o tumulto das diferenças”; entre psicanálise a arte. Psicanálise, uma escuta, uma fala com arte, uma arte do encontro; arte como representação sensível do humano - “A arte existe porque a vida não basta”, diria Ferreira Goulart. A imagem “Leda e o Cisne”, robusta, impetuosa e de autor desconhecido, desperta o desejo de que os autores desta Mostra, ainda desconhecidos de alguns, alcem vôos por onde sonharem, sejam academias, Instituições, Congressos próximos ou distantes...

“Leda e o Cisne” ilustra tumultos relevantes da mitologia grega; os mitos são a forma de narrar dos antigos. A união entre deuses e deusas significava a união de duas partes de um todo, e a união entre deuses e mortais gerava heróis; os povos (de todos os tempos) desejam/vam a proteção dos deuses e dos heróis. Neste mito, Zeus aparece trans-figurado em cisne, diferentemente da figura que usualmente escolhia – águia – para fugir ao olhar atento de Hera, sua esposa, e para não assustar Leda, rainha de Esparta casada com Tíndalo, que se comove com a figura frágil do animal e se aproxima. A união sugere sedução/abuso de Leda por de Zeus, mas, no desenho de Michelângelo que inspirou esta tela, a postura sexualizada da dupla remete a gozo por parte de ambos. Traições, sedução, gozo, “o feminino real”, “a(s) masculinidade(s)”, as “sexualidades trans”, a cultura que atravessa as relações são os tumultos evocados por este mito, esta obra, e são tema do nosso próximo Congresso Brasileiro. Desta união nascem Helena de Tróia, Clitemnestra, Pólux e Castor, dois deles criados pelo rei Tíndalo como filhos. Transgeracionalmente, Helena, a mulher mais linda da Grécia, também vive uma investida: é raptada, os irmãos se envolvem, e se inicia a guerra de Tróia... Transgeracionalmente, estes tumultos nos chegam, seguem vivos e nos convocam...

Estátua de mulher sentada

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Leda e o Cisne inspirou muitos artistas, e, em livros de história da arte como Gombritch, aparece a versão de Leonardo da Vinci, uma imagem mais casta do que a de Michelângelo. Da Vinci, mais de 20 anos mais velho do que Michelângelo, foi seu contemporâneo por um período da Renascença, na primeira metade do século XVI, e tinha um perfil (pessoal e artístico) mais recatado. Ainda assim, Leda e o Cisne de Da Vinci é uma de suas pinturas mais ousadas, pelo nu e deleite feminino exposto, “sem disfarces”. Da Vinci e Michelângelo dissecaram muitos corpos (e almas?), algo impensável até então pela proibição absoluta, e atingiram uma perfeição irretocável da figura humana, bem como de expressões afetivas (o esfumato de Da Vinci, que não satura a imagem, como na Mona Lisa), inaugurando em novo convite ao espectador - um espaço potencial, nas palavras de Winnicott; o inconsciente foi primeiro captado pelos artistas, como diria Freud e também desenvolveria Bion. O movimento renascentista ainda revela tumultos sociais da época; até então os artistas eram artesãos, que buscavam mecenas para sustentar seu trabalho, e, por isso, produziam submetidos às encomendas e também às ideologias bancadas e exigidas. A partir do renascimento, do florescimento de uma arte de maior expressão e qualidade, artistas e escolas de arte ganham respeito e prestígio, especialmente em alguns centros europeus como Florença, e são os mecenas que passam a procurar pelos mestres renomados para transcender sua existência com obras de arte, definidas pelos agora profissionais; o renascimento deixa para futuras gerações, inclusive de psicanalistas, um legado de liberdade de expressão. Michelângelo di Lodovico Buonarroti Simoni (Caprese, 6 de março de 1475 – Roma, 18 de fevereiro de 1564), autor bastante conhecido, um tumulto em corpo e alma; seu temperamento passional, conhecido de todos, levou Freud a escrever que o escultor/pintor traduzia pulsão na sua obra, quando escreveu sobre a escultura “Moisés de Michelângelo”, registrando o elo entre arte e psicanálise que nos chega e persiste em muitos textos psicanalíticos atuais. Exímio escultor, pretendia trabalhar per via di levare (escultura), e não per via di porre (pintura) - expressões adotadas pela psicanálise das artes - mas, dada a dificuldade de (inter)ferir em suas criações, a grande escultura que desejava fazer – o túmulo do papa Julio II – foi dada a outro artista; lhe coube a Capela Sistina. Neste trabalho, de fato o artista se eternizou, seja pelo resultado final, seja pela habilidade técnica surpreendente. O teto em afresco - técnica extremamente árdua, em que o reboco e a tinta são impressos simultaneamente na parede para compor a imagem e garantir longevidade a obra -, foi todo pintado pelo artista deitado em vigas, o que lhe custou passar anos sem conseguir esticar a própria coluna para ler uma carta; e o Jesus do Juízo Final (da parede ao fundo) é uma releitura muito própria, com um corpo exuberante, que transmite vigor e potência, contrastando muito com as imagens esquálidas, sofredoras, de Jesus produzidas por todos outros artistas e pensadores da época.

Desenho de uma pessoa

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Leda e o Cisne de Michelângelo, encomenda de um nobre – Duque de Ferrara – segue esta postura, uma imagem sensorial/sensual, insinuante, pulsional, o que despertou reações, especialmente a da rainha da Áustria, que teria ordenado a sua destruição pela lascívia da figura. Assim, a imagem da Mostra é uma pintura feita por autor desconhecido, baseada no desenho de Michelângelo possivelmente queimado; mas, como sabemos da psicanálise, o que uma vez existiu não se apaga da vida mental, nem por repressão, negação, ou outros mecanismos de banimento da consciência; a pulsão segue se expressando.

Por fim, este momento de exaltar a IV Mostra de Trabalhos do Instituto Sérgio Abuchaim oportuniza resgatar o trabalho da nossa querida colega Ceres Leonor Tavares, que tinha a delicadeza e sabedoria dos antigos, e sempre falava sobre mitos e histórias com a dedicação de uma professora, convidando a pensar, sentir e a expandir o conhecimento psicanalítico e pessoal, a formação. Ceres, nome da deusa da fertilidade ou das terras férteis, deixou sementes na nossa Sociedade, que seguimos colhendo, como este espaço para a mitologia, para a arte, para o elo de ligação – Eros - compreendendo que a psicanálise contemporânea caminha pelo (per)curso de valorizar a sensorialidade, para além das palavras, no encontro analítico. A IV Mostra, que se iniciou com esta arte do convite, para nosso prazer, percorreu trabalhos clínicos – “’O limite do analisável entre a regressão somática e o desligamento psicossomático’ iluminado por Marty, Roussillon e Winnicott” de Ana Nascimento e o caso de Bárbara Andrade-; teórico – “Cem anos do texto ‘A negação’ de Freud: sua importância na teoria e na prática clínica” de Juliano Porto-; e aplicados – “A bissexualidade psíquica na obra ‘O retorno do filho pródigo’ de Rembrandt” de Sérgio Lopes e “O mito de Frankstein, criado e costurado na incompletude e no desamparo, por Mary Schelley” de Tatiana Dame, com muita arte e encontros. Desfrutamos destas obras produzidas na nossa casa, uma vinda do Rio de Janeiro, e uma iniciada no Departamento de Saúde Mental da UFPel, onde temos semeado, desde seus primórdios, estudos psicanalíticos e, há 16 anos especialmente, um olhar com psicanálise e arte sobre o sofrimento humano, que também levamos a outras instituições de ensino da cidade. Leda e o Cisne, desde a antiguidade, provoca experiências emocionais e movimento, como no poema de Yeats, e desejamos que a Mostra inspire muitas gerações, fica nosso sonho e nosso convite!

Um baque surdo. A asa enorme ainda se abate
Sobre a moça que treme. Em suas coxas o peso
Da palma escura acariciante. O bico preso
À nuca, contra o peito o peito se debate.

Como podem os pobres dedos sem vigor
Negar à glória e à pluma as coxas que se vão
Abrindo e como, entregue a tão branco furor,
Não sentir o pulsar do estranho coração?

Um frêmito nos rins haverá de engendrar
Os muros em ruína, a torre, o teto a arder
E Agamemnon, morrendo.
Ela, tão sem defesa,

Violentada pelo bruto sangue do ar,
Se impregnaria de tal força e tal saber
Antes que o bico inerte abandonasse a presa?

William Butler Yeats, Leda e o Cisne

 

Bibliografia consultada

Gombrich, E.H. (2013) A história da arte. Rio de Janeiro: LTC.

King, R. (2004) Michelangelo e o teto do papa. Rio de Janeiro: Record.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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